O número de denúncias de violência contra crianças e adolescentes no Brasil caiu 12% durante os meses da pandemia em 2020 em comparação ao mesmo período do ano passado. Segundo dados do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, foram registradas 26.416 denúncias pelo canal “Disque 100” entre março e junho deste ano, contra 29.965 no mesmo período de 2019.
O número de registros em 2020 é o segundo menor para o período em toda série histórica, iniciada em 2011. Ele só superou as 24.188 denúncias que foram feitas em 2018.
Para o advogado, especialista em direitos da infância e juventude e ex-conselheiro do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), Ariel de Castro, o fechamento das escolas por conta da quarentena obrigatória contra o coronavírus pode ter influenciado na diminuição das denúncias.
“A subnotificação das denúncias acaba sendo um efeito colateral do isolamento social e da suspensão de aulas para conter as contaminações por Covid-19. A maioria dos casos são descobertos por meio das escolas, mas os educadores e cuidadores de creche costumam se preservar e fazer denúncia anonimamente no ‘Disque 100’ ou nos Conselhos Tutelares. As denúncias são em sua maioria de negligência, além dos casos de violência física, psicológica e sexual”, diz.
É o caso do abuso sofrido pela filha da trabalhadora autônoma M., de 47 anos, moradora da Zona Leste de São Paulo, que prefere não se identificar. A menina, de 5 anos, começou a apresentar comportamento diferente na escola e a professora chamou a mãe para conversar.
De acordo com a mãe, a criança já tinha sofrido abuso sexual de um vizinho de 16 anos e vinha tendo acompanhamento psicológico e médico desde novembro do ano passado. Em março deste ano, M. começou a desconfiar que o então marido também estava abusando da filha.
“Com a pandemia, meu marido ficou em casa todos os dias e teve mais oportunidades de abusar [da filha]. A professora detectou rapidinho. Ela percebeu que a menina só chorava, tinha medo de homens e não queria ficar perto dos meninos, só das meninas. Acho que as crianças deveriam ser orientadas para contar para o professor em quem elas confiam”, afirma.
Por causa das agressões, a criança fez perícia duas vezes no Hospital Pérola Byington, na região central da capital, e mãe e filha deixaram a casa onde moravam com o agressor sem ter para onde ir.
“Ela falou: ‘mamãe, papai fechou a porta, tampou minha boca, machucou aqui’. Se ela escuta algum barulho de noite, chora e diz que tem medo do pai e do adolescente, que eles vão vir matar a gente”, afirma.
De acordo com M., o ex-marido foi preso depois de abusar da filha pela segunda vez, bater em M. e persegui-las de carro pela rua. Agora, ela luta na Justiça para provar as agressões. A audiência foi marcada para o dia 18 de setembro.
“Eu me considero uma pessoa morta. Ele chegou a dizer que ia me matar e depois se matar. O adolescente que abusou da minha filha foi colocado como testemunha do caso. Não sei o que vai acontecer comigo. Não tenho meios de sobrevivência, vou ter de voltar para aquele apartamento [vizinho do adolescente que abusou da filha]. Eu choro todos os dias de desespero.”
Relatório de denúncias
O “Disque 100” é um serviço de atendimento telefônico gratuito que recebe denúncias sobre violações dos Direitos Humanos em todo o país e em todas as áreas. Os dados são compilados pelo governo federal e divulgados desde 2011.
O último relatório anual sobre violações de direitos humanos, divulgado em maio, apontou recebimento de 86.837 denúncias relacionadas a crianças e adolescentes no país em todo o ano de 2019, aumento de 14% em relação a 2018. As principais violações foram negligência (62.019), violência psicológica (36.304), violência física (33374) e violência sexual (17.029). As denúncias podem conter mais de um tipo de violação.
O governo federal, no entanto, deixou de incluir no documento os dados sobre retornos dos órgãos de apuração e proteção dos encaminhamentos tomados diante das denúncias recebidas pelo Disque 100. Segundo Ariel de Castro, a falta de encaminhamento agrava ainda mais o problema da subnotificação de denúncias.
“Os conselhos tutelares deram só 10% de respostas ao Disque 100 em 2018. Em 2019, não se sabe, porque essa informação foi retirada do relatório. Com um índice tão baixo de respostas sobre os encaminhamentos dos casos, quanto as providências, investigações e medidas de proteção às vítimas tomadas, podemos concluir que o sistema na prática tem pouca utilidade e efetividade”, afirma.
Outro ponto que ficou prejudicado com a redução de denúncias foi a adoção de crianças no país. A presidente da Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção (Angaad), Sara Vargas, afirmou que nesse período de isolamento social houve menos casos de acolhimento.
“A própria rede de proteção não conseguiu continuar trabalhando da forma ideal. A maioria das denúncias de maus-tratos e abusos contra crianças parte da escola ou dos hospitais. E as crianças deixaram de ir para a escola. Então houve menos casos de acolhimento. É todo um ciclo. Menos crianças, um processo mais lento”, diz.