OPINIÃO: Transparência sobre a Fico

Júlio Campos
Cuiabá recebe uma audiência pública da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), com o objetivo de debater a concessão do trecho ferroviário em construção numa extensão de 383 km ligando Água Boa a Mara Rosa (GO) e cruzando os municípios de Nova Nazaré e Cocalinho. A exemplo da audiência na capital mato-grossense, duas com idêntico sentido foram realizadas em Brasília e Salvador. O rito da ANTT é o que exige a legislação, mas a obra, por sua dimensão de integração nacional, alcance social e impacto econômico, precisaria ser amplamente apresentada e discutida com a população residente em seu raio de influência.
A audiência em Cuiabá, nessa sexta-feira, 14, fecha o ciclo dos debates, quando deveria ser ponto de partida para o aprofundamento dos mesmos. Senão vejamos.
A construção do trecho entre Água Boa e Mara Rosa é o que se chama de investimento cruzado. A mineradora Vale explora em concessão as estradas de ferro Carajá (Pará e Maranhão) e Vitória a Minas (Espírito Santo e Minas Gerais). Ambas as concessões terminariam em 2027, e um entendimento entre o governo federal e a Vale as prorrogaram por 30 anos em troca da construção do trecho citado e da infraestrutura necessária à sua operacionalização. Em Mara Rosa, no dia 17 de setembro de 2021, o então presidente Jair Bolsonaro autorizou o começo das obras, com previsão de custo de 2,7 bilhões de reais e conclusão em 2025.
A Fico fará conexão com a ferrovia Norte Sul, em Mara Rosa, e por aquela ferrovia Mato Grosso poderá escoar commodities agrícolas para o porto de Itaqui, no Maranhão.
O cronograma está atrasado e o apito do trem em Água Boa não será ouvido antes de 2027. O atraso não poderá jamais ser creditado a eventuais problemas de recebimento, pois o modelo do entendimento em si é a quitação antecipada pelo serviço prestado.
A audiência da ANTT tratará da concessão pela concessão, pois imediatamente após o corte da fita, o trecho será dado em concessão, mesmo que a continuidade do projeto, em dois trechos, um com 505 km entre Água Boa e Lucas do Rio Verde, e outro, daquela cidade a Vilhena (RO), num trajeto de 646 km continue no papel. Portanto a extensão da ferrovia será de 1.534 km ligando Goiás via Mato Grosso a Rondônia.
Na condição de vice-presidente da Assembleia Legislativa preocupa-me uma concessão para exploração parcial da ferrovia, enquanto outra parte permanece como incógnita. Precisamos de clareza sobre a Fico e não de debatê-la em fatias.
O ciclo das audiências, para transparência sobre a Fico e sua interação com a comunidade em seu raio de influência teria, obrigatoriamente, em termos de razoabilidade, que incluir Cocalinho, Água Boa e algumas cidades do seu eixo de influência.
O investimento cruzado que resulta na obra contempla a prorrogação de concessões de ferrovias que não se limitam ao transporte de minério e de outras cargas, mas, também de passageiros.
O ouvidor da ANTT, Robson Crepaldi; e o secretário Nacional de Transportes Ferroviários, Leonardo Ribeiro, não podem escutar seletivamente em locais distantes centenas de quilômetros dos trechos onde os trilhos serão estendidos. É preciso ouvir quem prioritariamente deve falar sobre o projeto. Uma ferrovia, por mais cuidados ambientais que a cerquem, por mais estudos de viabilidade econômica que a sustentem, jamais poderá fechar os ouvidos àqueles que serão impactados histórica e culturalmente pelo vaivém das composições ferroviárias. É imprescindível que a ANTT e o governo federal como um todo ouçam o Vale do Araguaia, que é a região mato-grossense onde ecoará o apito do trem.
O investimento cruzado que resulta na obra contempla a prorrogação de concessões de ferrovias que não se limitam ao transporte de minério e de outras cargas, mas, também de passageiros. Ainda que para alguns o transporte de cidadãos pelos trilhos seja considerado ultrapassado, quem poderá dizer se ele deve ser ou não incluído à concessão é o morador do trajeto, que não deu procuração a ninguém para falar por ele. E essa modalidade de transporte de massa está em alta. Recentemente a Vale botou em circulação um moderno trem de passageiros em sua linha Vitória a Minas, oferecendo conforto e tendo uma demanda enorme.
Nada justifica deixar de ouvir os moradores (e seus representantes políticos) nas cidades no trajeto com as obras em curso, e na outra parte do projeto, ainda sem execução, entre Água Boa e Vilhena.
A infraestrutura moderna não tem espaço para puxadinhos, para módulos improvisados. Uma ferrovia, pelo alto custo da obra, pode até ser construída em etapas, mas desde que planejada no todo e socialmente em harmonia com a população à margem dos trilhos. Nesse contexto temos que levar em conta os povos originários, a exemplo dos xavantes, que mesmo não tendo seus territórios violados, inevitavelmente sofrerão impactos.
Mato Grosso quer ouvir a ANTT sobre a Fico, ferrovia planejada desde 2007 para inclusão ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), e ao mesmo tempo quer falar, não somente com as autoridades do setor, mas com a União. Em razão do projeto da ferrovia acontece uma explosão demográfica em Água Boa, onde há um déficit habitacional de três mil moradias.
Que a audiência em Cuiabá alcance o melhor resultado possível. Minhas assessorias das diversas áreas acompanharão o ato, mas que a ANTT tenha sensibilidade suficiente para ouvir aqueles que verdadeiramente podem falar sobre o projeto de Fico, em execução ao lado de suas casas, nas áreas de suas memórias afetivas e de onde arrancam o pão de cada dia. Transparência sobre a Fico! Isto é o mínimo que se espera em nome do princípio federativo ditado por nossa Constituição, da qual fui um dos signatários no Congresso Nacional.
Júlio Campos (União) é vice-presidente da Assembleia Legislativa e foi deputado federal, governador e senador da República